Imago Dei

Aquino e Scientia

Virtude intelectual para o pensamento alegórico

Reflectum
6 min readOct 4, 2024

O pensamento medieval sobre o estudo da natureza é muito diferente do que produzimos hoje. O objetivo da Filosofia Natural era o aperfeiçoamento do indivíduo, para elevação da mente, partindo do que é material para o que é espiritual, através da alegoria. Os estranhos desenhos do período podem ser melhor compreendidos quando entendemos essa busca por elevação da mente, por meio da scientia e das arte.

Neste artigo da temporada “Fé e Ciência na Arte” vamos falar sobre scientia como virtude, como os medievais tratavam do estudo da natureza, a partir de Tomás de Aquino, e como isso foi registrado nos Bestiários e outras escritos da época.

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Scientia como Virtude: aperfeiçoamento através do estudo

A ideia de “livro da natureza” surge a partir da leitura de trechos da bíblia como o Salmo 19, que afirma a existência de um discurso silenciosa na natureza sobre Deus. Ainda na Patrística, passou-se a considerar o como a contemplação das criaturas deveria nos levar corretamente à contemplação do Criador. Assim, o estudo da natureza tinha como principal objetivo o aperfeiçoamento individual.

Havia um entendimento de que a Queda afetou tanto o testemunho das criaturas quanto nossa capacidade de discerní-lo. Considerava-se que os primeiros seres humanos eram plenamente capazes de fazer esta leitura correta da natureza. Boaventura, por exemplo, entendia que este estado era o “domínio” que Adão tinha sobre os animais. Para nós possamos compreendermos corretamente, precisamos antes ser “purificados pela justiça e aperfeiçoados pela sabedoria”, isto é, o ser humano, por si só, não é capaz de compreender os verdadeiros sentidos morais e teológicos das criaturas

a instrução formal — incluindo o conhecimento do mundo natural — tinha, portanto, um papel a desempenhar ao restaurar à mente parte das suas potências e perfeições originais”. — Peter Harrison

A Scientia era uma virtude. O exercício constante do estudo para elevação da mente. O que eles faziam não era aproximar uma ‘ciência’ Aristotélica da Teologia, para encontrar conhecimento de Deus derivado do mundo natural. Tratava-se de um exercício mental para promover virtudes a fim de preparar a mente para “reconhecimento de certas verdades”. Scientia era a preparação da mente (sentido, imaginação, razão, entendimento, inteligência e discernimento moral) para entender as verdades últimas.

Aqui podemos notar que há um relação dessa prática (leitura simbólica da natureza) com as práticas espirituais monásticas como a lectio divina (leitura, meditação, oração e contemplação).

Tomás de Aquino e a alegoria como método

No período medieval, a alegoria era método para estudar a natureza, isto é, entendendo Cristo no centro de todas as coisas. As criaturas ocultam sentidos morais e teológicos que devem ser descobertos. Influenciados por nomes como Ambrósio de Milão (337–397) e Basílio Magno (330–379) que olhavam para as criaturas a fim de buscar lições morais sobre o que fazer e o que evitar, acreditava-se que o mundo “é verdadeiramente um local de formação para almas racionais”

Para Aquino, em Suma Teologica, a alegoria é possível, não porque as palavras tem muitos significados, mas porque as palavras falam de coisas que são tipos de outras coisas. Aquino entendia que o interesse não deve estar nas criaturas em si, mas sim nos sentidos morais e teológicos que elas ‘ocultavam’. Buscava-se estudar a natureza para encontrar contemplação divina.

no período inicial da Idade Média, a inteligibilidade da natureza estava primariamente nos seus sentidos morais e teológicos, e não em conjuntos de relações causais. — Peter Harrison

Esse processo de ir do literal para o alegórico eleva a mente, exercitando virtude. Aquino então passa a considerar que “tudo o que se diz de Deus e das criaturas é dito como se houvesse alguma relação da criatura com Deus como seu princípio e causa, em que todas as perfeições das coisas preexistem em excelência”. Isto é, Deus não seria a causa primeira numa série de outras causas subsequentes. Ele é visto como participante de todo efeito natural assim como os agente naturais envolvidos, “cada qual de um modo diferente”.

Aquino entendia, a partir de Rm 1:20, que compreender “os efeitos de Deus” levam à contemplação do próprio Deus e “assim o homem é guiado ao conhecimento de Deus”. A “criatura racional” que é “feita desforme” adquire “certa retidão” ao progredir no conhecimento da causa primeira. O exercício da scientia estava ligada a uma busca-se por um tipo “restruturação cognitiva”, isto é, um desejo pelo retorno ao estado Pré-Queda de capacidade racional.

É importante apontar que isso não é ‘teologia natural’. O que os medievais faziam era olhar para a Natureza a partir das Escrituras. Teologia Natural surge no século XVII num esforço de entender Deus a partir da Natureza utilizando a Razão.

Desenhando Bestiários e Luminuras

Era comum, neste período, a criação de Bestiários, produtos desses estudos alegóricos da Natureza. Entre os mais conhecidos, está o Bestiário de Aberdeen (c. 1200). Precisamos entender que os bestiários não era percebidos como arte por quem os fazia. Eles eram registros de filosofia natural. Porém, podemos olhar para eles em relação com as iluminuras e outras ilustrações e pensar sobre o que se entendia como Belo naquela época.

Para os medievais, as formas criadas manifestam a beleza, que é um convite ao amor à Deus. Influenciados pelo pensamento de Agostinho, consideravam que a beleza é incorporada na ideia de vida santa que Deus espera de nós. Assim, a arte também deveria elevar a mente às verdades superiores.

Para Aquino a Beleza tem 3 qualidades:

  • integridade: está finalizada, existindo como algo completo em si.
  • harmonia: entre as partes que compõem a obra
  • clareza: tanto no uso das cores quanto no esplendor da obra

Isso, não significa que a obra deveria ser agradável. Há espaço para o grotesco também. Podemos tomar as gárgulas, na arquitetura, como exemplo. É possível encontrar, nas ilustrações, criaturas estranhas meio humanas, meio animalescas.

Mas sendo luminosamente nobre, a arte deveria iluminar as mentes para que elas viajem até às verdadeiras luzes […] A mente estulta ascende à verdade por meio daquilo que é material, e ao ver essa luz, é ressuscitada de sua submersão anterior. — Abade Suger (1122 d.C.)

O Pelicano é então representado como uma criatura que nos releva Cristo. Ele dá do seu sangue para alimentar seus filhotes e assim eleva nossa mente a entender o sacrifício de Jesus por nós.

Aquino é um nome importante quando falamos sobre filosofia natural, teologia e arte, considerando que ele escreveu sobre os três temas. Essa relação entre scientia e arte para elevação da mente a fim de compreender as verdades superiores é certamente muito interessante e merece maior estudo. Quem sabe numa temporada futura?

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Referências

Thiesen, G. Theological Aesthetics. Wm B Eerdmans, Co, 2004
Harrison, P. Os Territórios da Ciência e da Religião. Viçosa: Ultimato, 2017

Reflexões sobre arte, cultura e teologia. Pensando a prática e a pesquisa em arte dentro de uma cosmovisão cristã.

“Rogo-vos pois [artistas] que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, esta é a [sua obra de arte]. Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente…” Rm 12:1–2

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