Coram Deo

Jerusalém e Atenas: combina ou não combina?

Como os gregos influenciaram a Patrística no estudo da natureza

Reflectum
5 min readSep 28, 2024

Provavelmente, você já ouviu a frase de Tertuliano “o que Jerusalém tem a ver com Atenas” ou alguma variação dela, normalmente num contexto de descaso com a ‘filosofia secular’. Mas o que a Patrística realmente pensava sobre a Filosofia Grega e como isso influenciou a formação do cristianismo? Precisamos encontrar Orígenes e Agostinho para entendermos melhor as conexões entre fé cristã e filosofia natural no tempo da Igreja Primitiva.

Neste primeiro artigo da temporada Fé e Ciência na Arte vamos falar sobre a relação entre a Patrística e Filosofia Grega, focando nas ideias sobre Filosofia Natural a partir da pesquisa de Peter Harrison.

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Os gregos faziam ciência? O que é Filosofia Natural

Filosofia Natural (physika) era o estudo da natureza, porém o que os gregos buscavam através desse estudo não tem nada a ver com o que os cientistas fazem hoje. Filosofia, para os gregos, era a busca da sabedoria para saber viver bem. Para Sócrates, era o ofício de examinar a vida com o objetivo de reforma moral. Para Epicuro (341–270 a.C.) era sobre garantir a vida feliz por meio de palavras e argumentos. Para Sêneca (c 3 a.C. — 65 d.C.), a filosofia nos molda e ordena, guiando a nossa conduta no que devemos fazer e deixar de fazer. Assim, buscava-se, no estudo da natureza, obter para si a ordem percebida no cosmo e, assim, encontrar elevação moral e intelectual “para atingir a vida que os deuses estabeleceram” (Platão, em Timaeus)

Para isso, a Filosofia Natural era parte de um progressão de estudos que iniciava nela, passava pela Matemática ou Lógica e chegava na Teologia e Ética. Indo das coisas mais concretas para as coisas mais abstratas. Haviam diversas ‘práticas terapêuticas’ e ‘exercícios espirituais’ nas diversas escolas filosóficas que buscavam a transformação do modo de ser e de ver da pessoas. Isto era relacionado com a disciplina dos desejos, do juízo e das inclinações.

Contra e A Favor dos Gregos

Podemos dizer que havia um tipo de ‘rivalidade’ entre os filósofos gregos e os teólogos cristãos no período. Porém, as críticas não se referem a sistemas de conhecimento rivais como alguns afirmam (a fim de criticar a religião). Eles apontam para uma crítica ao modo de vida. A relação do cristianismo primitivo com a filosofia grega e com o judaísmo era de prática espiritual distinta que busca uma formação não compatível com o verdadeiro culto.

Naquele tempo, doutrina era o ensinamento que produz um hábito, fornecendo o contexto para prescrições morais e exercícios espirituais. O cristianismo era entendido como um novo modo de vida, uma nova filosofia que formava um novo povo, transcendendo contextos culturais. ‘Cristão’ era uma nova categoria étnica e não proclamação religiosa. Como disse Eusébio de Cesareia (260–341) “não é helenismo nem judaísmo, mas um novo e verdadeiro tipo de filosofia divina”.

Para Tertuliano (160–255), a filosofia pagã era a mãe de toda a heresia. Mas isso não tinha relação com as ideias somente. Havia uma relação entre ‘crença’ e ‘hábito’. Para Tertuliano, a filosofia grega guiava o indivíduo por hábitos não relacionados como o culto a Deus, logo a pessoas que prática esses hábitos não poderia ter crenças corretas sobre Deus.

Para Clemente de Alexandria (150–220) a filosofia grega seria “obra de providência divina” pois, assim como a Lei preparou os judeus, a filosofia havia sido “formação preparatória” para o Evangelho. Pois o Cristianismo é a Filosofia Verdadeira que agora estava plenamente revelada a todos.

Algumas práticas gregas foram então adotadas pelos cristãos. O ‘catecismo’, por exemplo, veio de Epicuro, como o exercício de repetição das doutrinas para a formação dos hábitos desejados. Agostinho, que também era a favor de criar diálogo com a filosofia grega, recomendava a repetição do Credo Apostólico ao acordar e ao se deitar.

Filosofia Natural na Patrística

Partindo de passagens como o Salmo 19 (há um discurso silencioso na natureza sobre Deus), alguns teólogos da Patrística aceitaram a “fórmula de Anaxágoras” sobre a progressão do estudo, entendendo que “o manifesto é visão do oculto” pois “desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus […] tem sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas”. Assim, a progressão de estudo dos gregos foi reinterpretada como “estágios no caminho da contemplação de Deus” por Clemente e Orígenes. Esses Estágios de Contemplação foram assimilados pela cultura monástica com João Cassiano (360–430) como ‘três renúncias” e apropriadas pela teologia mística como Purgatio, Illuminatio e Unitio

Para Agostinho, que se aproximou mais dos estoicos nesse tópico, Deus é a causa última do ser (física), o critério do pensamento (lógica) e a regra de conduta correta (ética). Assim, toda a filosofia natural, moral e a lógica estariam contidas nos mandamentos de “amar a Deus e amar ao próximo”.

Passou-se a considerar que a contemplação correta das criaturas levaria a contemplação do próprio Criador, pois haveria uma relação entre as coisas na categoria visível e as coisas na categoria invisível. Concluiu-se que as coisas criadas tem significados morais e teológicos ocultos que devemos compreender a partir da leitura da Bíblia. Segundo Evágrio Pôntico (345–399), Deus escreve em nós palavras de sabedoria e providência quando lemos o livro da natureza.

Os esquemas de interpretação bíblica surgiram dessa relação entre os ‘dois livros’ a partir das ideias de Orígenes. Seriam então 4 estágios de interpretação: literal\ histórico → tropológico (moral) → anagógico (salvação e vida eterna) → alegórico (Cristo no centro da história). Temos um exemplo em João Cassiano: Jerusalém = cidade dos judeus → alma humana → cidade celestial → igreja de Cristo. Para Agostinho, a alegoria não é simplesmente uma técnica, e sim está relacionada com o processo de discernir os significados morais e teológicos presentes porém ocultos nas coisas naturais. O Hexamerão, um estudo dos 6 dias da criação em Gênesis, se tornou literatura comum da época.

Percebemos então que houve um diálogo intenso entre Jerusalém e Atenas e nós colhemos os frutos até hoje. Os primeiros cristãos buscavam estudar a natureza com objetivos semelhantes aos dos gregos, conhecer melhor o Divino e ser transformado no processo. A grande diferença estava na presença das Escrituras, que guiava os cristãos no exercício de interpretar os significados ocultos na natureza. A resposta final é: combina sim!

Reflexões sobre arte, cultura e teologia. Pensando a prática e a pesquisa em arte dentro de uma cosmovisão cristã.

“Rogo-vos pois [artistas] que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, esta é a [sua obra de arte]. Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente…” Rm 12:1–2

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