Imago Dei

O Artista como um gênio criativo

O que a filosofia, a sociologia e a neurociência tem a dizer sobre dom e talento.

Reflectum
7 min readJan 29, 2024

É comum nos depararmos com aquela imagem do artista boêmio, gênio criativo incompreendido pela sociedade que sofre por sua arte. Porém, o que é um ‘gênio’? Como podemos descrevê-lo? De onde vem e o quê o torna especial? Qual a relação entre dom e gênio? Neste segundo artigo da temporada In.Spira.tio vamos falar sobre o gênio artístico e o talento artístico a partir de um diálogo entre filosofia, sociologia e neurociência.

O gênio criativo e a origem do dom: considerações filosóficas

Platão colocou, em Fredo e Íon, que o “dom” vem por loucura divina, como uma possessão. O daimon, ou a musa, tomam o artista e este não precisa de tékhne.

No Renascimento, Giorgi Vasari (biógrafo dos artistas) acreditava que o dom artístico vem do Geni Locci e, por isso, havia tantos bom artistas em cidades como Florença. O ‘espírito do lugar’ dá a eles o dom. Aqueles que recebem, aprendem mais e melhor e serão melhores artistas do que os que não receberam o dom. Vasari trabalha essa ideia a partir do Daimon grego-romano, a divindade do lugar (cidade, casa, fonte, estrada, etc.) que poderia trazer proteção e prosperidade.

No período moderno, grandes nomes como Hegel e Kant seguiram essa ideia central. Para Hegel, os espíritos do lugar escolhem, no nascimento, aqueles que serão dotados de habilidades especiais. Assim, cada região teria gênios característicos a cada tipo de arte e, por isso, certas cidades teriam um encaminhamento natural para um segmento artístico. O verdadeiro artista seria aquele que, escolhido pelo gênio, não precisa trabalhar muito para produzir sua obra. Não seria pela “pressão da mão”, mas pelo “sopro do espírito’.

Para Kant, é possível receber o gênio também por consanguinidade, uma disposição natural inata. A arte é recebida e não aprendida, é originalidade, e o artista não é capaz de explicar o que faz ou porque faz. A verdadeira arte não é método nem imitação mecânica e se torna o novo modelo para todos os outros. É aqui que o gênio passa a ser associado à instabilidade. O artista escolhido é volúvel, extravagante e inconstante, destrambelhado.

No século XIX, o gênio traz sofrimento. Nietzsche e Baudelaire resgatam a ideia das Musas Gregas e fundem com o Geni Locci. O divino, ao escolher o artista, dá a ele um fardo e toma algo dele até que seja satisfeito na produção da obra de arte. O verdadeiro artista é alguém que recebeu o gênio e por isso não precisa trabalhar muito. Estudar é para os que não nasceram com o gênio.

As vanguardas do século XIX trabalhavam com esse ideia e passaram a questionar as Academias de Belas-Artes, como não necessárias para os verdadeiros artistas e estavam presas na imitação mecânica. Questionou-se também o lugar do artista na sociedade. O artista é o ‘gênio incompreendido’, hiper-sensível, que pode ver na grande escuridão o que os homens comuns não podem nem considerar. Como disse Schopenhauer, o artista vê o fundamental, o universal e o eterno, enquanto que o homem comum só vê o temporário, específico e imediato.

O contexto social e o desenvolvimento do talento: considerações sociológicas

Nietzsche, apesar de afirmar que o gênio vem da natureza, dizia que a ‘alimentação’ pela cultura é necessário e sem ela não o ‘gênio’ pode se desenvolver. Aqui, vemos uma importância maior ser dada ao contexto em que o artista habita.

O poeta T S Eliot, no século XX, nega a ideia de um ‘eleição’ pelo Geni Locci. Trabalho e oração devem ser hábitos do artista. Eliot traz em si a influência da Reforma Protestante, ao falar sobre a origem do dom em ‘O mito do talento individual do artista’. O artista deve se empenhar no estudo, pois a tradição é alcançada pelo esforço. Afirma-se a importância de se ter uma “bagagem artística” e do “empenho criador”.

Para o sociólogo Nobert Elias, o contexto social tem relação direta com a produção cultural de um artista e a obra de arte não é independente da existência social de seu criador. Ao escrever sobre Mozart (que começou a compor aos 5 anos de idade), Elias considera sua formação, a organização do sistema de arte, as dinâmicas sociais e o contexto cultural em que o compositor estava inserido como influências na sua trajetória. Não foi apenas o ‘dom’ que garantiu a Mozart sua carreira e fama.

Assim, não seria o Geni Locci de Florença o responsável pelos artistas que ali existiram. Havia um contexto cultural que valorizada as artes, inúmeros ateliês para aprendizado e mecenas capazes de investir. Há uma relação entre indivíduo e sociedade. Os artistas foram ‘alimentados’ pela cultura e desenvolveram ‘bagagem artística’ através do estudo.

Howard Becker, outro sociólogo, diz que nem mesmo os artistas de vanguarda estão completamente descolados ou isolados de um sistema (ou mundo) de arte. Todo artista faz parte de um ‘mundo’ onde a ação coordenada dos participantes forma convenções que organizam o processo de concepção, execução, distribuição e recepção da obra.

Dom ou talento?

Vamos juntar filosofia, sociologia e neurociência para tentar achar uma resposta.

Quando filósofos e cientistas usam a palavra ‘gênio’, eles não estão falando da mesma coisa. Na ciência, ‘gênio’ se refere a alguém de capacidade inata extraordinária em qualquer área de atuação. Ou seja, não se resume às habilidades artísticas. Em algumas situações, essa capacidade pode ser mensurada e considera-se gênio quem tem o QI (Teste de Stanford-Binet) acima de 140.

Em 1869, Galton relacionou ‘gênio’ como habilidade natural. Aquelas habilidades de intelecto e disposição que qualificam alguém para performar de tal forma que gera uma reputação de líder, originador, a quem a sociedade se vê devedora. Porém, ele aponta que a capacidade deve ser acompanhada pelo zelo e o poder de conduzir seu trabalho dificultoso.

Podemos perceber que o gênio está relacionado então a um talento: a expressão de uma disposição natural para aprender algo, em determinado campo do conhecimento, com maior facilidade. Isto envolve fatores biológicos, psicológicos, familiares, societais, culturais e históricos. Pois o aprendizado se dá dentro da cultura em que o indivíduo está inserido, é ali que o talento é alimentado e instigado. Podemos apontar também que o talento deve ser acompanhado de dedicação ao trabalho. Ter facilidade para aprender algo não te leva a lugar nenhum se você não se dispor a aprender.

Voltemos ao exemplo de Mozart. Seu pai era compositor, assim o pequeno Mozart foi exposto à música desde cedo e tinha a possibilidade de aprender com seu pai. Ele começou a compor aos 5 anos e aos 13 já era um profissional reconhecido. Porém, o que ele fazia até então era “mais do mesmo”. Ele só começou a desenvolver seu estilo, criando algo realmente original, depois dos 20. Ele precisou de tempo e dedicação para se tornar o grande gênio da música que reconhecemos hoje.

Nem todo talento está relacionado à mensuração de QI, e sim à disposição neurobiológica e plasticidade do cérebro da pessoa. O processo de aprendizado de uma habilidade específica provoca mudanças no cérebro. Não é por possessão divina ou ‘sopro do espírito do lugar’. Adquirir a tékhne é necessário para o talento exista verdadeiramente. E somente desenvolvendo a ‘bagagem artística’ é que o artista se torna capaz de fazer algo que é original e exemplar.

O artista é um gênio criativo?

Poderíamos dizer então que o artista é um gênio criativo? Nem todo artista será reconhecido como um gênio (em vida ou após a morte). Porém, podemos considerar que aqueles que se dedicam às artes, em qualquer linguagem, o fazem porque 1) possuem uma disposição cognitiva/natural para tanto; 2) aprenderam, na cultura, a amar a arte e ver valor nela; e 3) tiveram a possibilidade de aprender a técnica desejada. O desenvolvimento do talento envolve, além da disposição natural, iniciação ‘precoce’, motivação, persistência no esforço e envolvimento com a habilidade no decorrer de anos.

Assim, podemos dizer que não se nasce artista. O artista se faz ao longo da vida.

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Como cristãos, entendemos que a capacidade artística vem de Deus e por isso chamamos de dom. Entretanto, nem todo ser humano tem o talento para as artes. Nos próximos artigos desta temporada, vamos explorar mais a relação entre dom, talento e trabalho na vida do artista.

Referências

BECKER, Howard. Mundos da Arte. Lisboa: Livros Horizontes, 2010
DE MARTINO, Marlen. Donner la Mort: o dom e o gênio nas teorias de arte. Palíndromo nº9 ano 2013
ELIAS, Nobert. Mozart: sociologia de um gênio. Zahar, 1994
KALBFLEISCH, Layne. Functional neural anatomy of talent. in The Anatomical Record, vol 277b, pg 21–36, março de 2004
ROOKMAAKER, Hans. A arte não precisa de justificativa. Viçosa: Ultimato, 2010
SALES, Erinaldo. O conceito de gênio na filosofia. Cadernos Paranoá. [S.l.] v. 2; n 2. 2006 p141–160
SIMONTON, Dean Keith. Genius 101. New York, Springer Publishing, 2009.

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Reflexões sobre arte, cultura e teologia. Pensando a prática e a pesquisa em arte a partir da filosofia reformacional.