Coram Deo

Produção de Cultura e Shalom na Babilônia

Trocando a ‘guerra’ pelo ‘cuidado’

Reflectum
6 min readJun 25, 2024

Por muito tempo, evangélicos tem pensado sobre nossa relação com a cultura a partir de um lugar de oposição: há listas do que devemos evitar porque ‘é pecado’, não pode escutar ’música do mundo’, só o que é da igreja. Mas, enquanto a igreja se afasta dessa visão, que direção deveríamos tomar?

Neste artigo da temporada ‘Às Margens da Babilônia’ vamos falar sobre a ideia de ‘cuidado cultural’ de Makoto Fujimura e porque essa abordagem é melhor do que a já conhecida ‘guerra cultural’

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Entendendo ‘Mandato Cultural’

Nossa relação com a cultura é fundamentada naquilo que convencionamos chamar de Mandato Cultural. Se trata do desenvolvimento das possibilidades ocultas no ventre da Criação.

Segundo Dooyeweerd, a cultura humana é o reflexo da Imago Dei diante da riqueza de sentidos da criação e representa o convite do Criador para a progressão dinâmica da história: abertura, diferenciação e integração dos potenciais criados. Assim, a cultura é resposta formativa humana aos potenciais da ordem criada e inclui: tecnologia e artefatos; linguagem; arte; filosofia; ciência (naturais, exatas e humanas)

Quando o homem explora, conhece, transforma, modifica, instrumentaliza, organiza ou inventa tecnologias e artefatos dos elementos ou materiais da criação, ele está engajado ou envolvido com algum tipo de ação cultural.” — Igor Miguel, em Escola do Messias

É no cumprimento do Mandato Cultural que somos capazes de buscar a Shalom em meio ao exílio.

Nossa relação com a cultura: considerações críticas

H Richard Niebuhr apresentou 5 modelos de interação com cultura que podem ser percebidos ao longo dos mais de 2mil anos de cristianismo. A própria igreja brasileira, apesar de ser bem mais nova, já passou por alguns deles.

O modelo mais fácil de reconhecer na nossa breve história é ‘Cristo Contra Cultura’ que é marcado por uma posição de ‘nós os crentes de Jesus’ versus ‘eles os pecadores no mundo’, onde o cristão deve criar sua própria sub-cultura e ‘deixar as coisas do mundo’. O problema dessa visão é que ela ignora a Graça Comum, que pode enriquecer nosso desfrute e diálogo com as produções artísticas mais variadas (o templo de Israel e o artista estrangeiro Irão); desconsidera o efeito do pecado na vida do cristão como se tudo o que produzimos fosse ‘santo’ ou ‘de Deus’; e tem uma visão destorcida sobre como nos relacionamos com a cultura que nos cerca (a linguagem é também parte da cultura). Não precisamos deixar de sermos brasileiros para sermos cristãos.

Dentro desse modelo, a arte é pensada a partir da sua utilidade: pra cantar no culto ou pro evangelismo. Se ignora que podemos fazer arte simplesmente porque Deus nos dá a possibilidade e que não precisamos de uma ‘utilidade’ para justificar sua existência. A justificativa da arte está em sua relação última com o doador da dádiva do belo no estético, mesmo reconhecidas as várias funções que a arte exerce na realidade diversa e coerente criada por Deus

Essa visão, também tende a analisar a cultura apenas a partir dos aspectos de moralidade, esquecendo que produções culturais (materiais ou imateriais) são esteticamente qualificadas. Pensa-se conteúdo como desconectado da forma. Lembre-se que, a partir de Rookmaaker, consideramos o aspecto estético como irredutível e tem em seu núcleo de sentido a harmonia bela. Por isso, quando estamos debaixo desse pressuposto de oposição, a produção cultural é enfraquecida.

A religião e a Arte têm, cada uma, sua própria esfera de vida; estas, a princípio, dificilmente podem ser distinguíveis uma da outra e portanto estão intimamente entrelaçadas, porém, com um desenvolvimento mais rico estas duas esferas necessariamente separam-se… tento chegado a seu desenvolvimento superior, tanto a religião quanto a arte exigem uma existência independente, e os dois troncos, que a princípio estavam entrelaçadas e pareciam pertencer a mesma planta, agora parecem nascer de uma raiz própria. Este é o processo de Arão para Cristo, de Bezaleel e Aoliabe para os Apóstolos” — Abraham Kuyper, em Calvinismo

Essa ideia se desenvolveu com a ideia de ‘guerra cultural’ e passa a ver a cultura como um espaço a ser conquistado, mas não pela produção cultural de grandes obras e sim pela influência política. Nas últimas décadas, a ideia por trás de ‘guerra cultural’ também passou a se relacionar com poder político e imposição de ideologias. O discurso do ‘nós’ versus ‘eles’ é intensificado e começa a se opor ao amor e perdão. ‘Eles’ não são mais vistos como o próximo que devemos amar e com quem compartilhamos o Evangelho, ‘eles’ são simplesmente o inimigo que precisamos vencer. Certamente não está fundamentada naquilo que Jesus nos disse para fazermos: anunciar o Evangelho, amar o próximo, chorar com os que choram, buscar justiça… você entendeu. Lembremos que o apóstolo Paulo diz que nossa guerra é contra potestades espirituais e nossas armas são espirituais e poderosas em Cristo.

Hunter identifica o culpado em sua obra Culture Wars, argumentando que uma fraqueza compartilhada ‘tanto por alianças ortodoxas quanto progressistas’ é ‘um desrespeito implícito, mas imperioso, em relação ao alcance de uma vida em comum’. Esse ‘desprezo pelo alcance de uma vida em comum’ é o fracasso abjeto de nossos tempos. No entanto, a partir desse fracasso, podemos iniciar um novo caminho em direção ao cuidado cultural. A cultura não é um território a ser conquistado ou perdido, mas um recurso que somos chamados a administrar com cuidado. A cultura é um jardim a ser cultivado.” — Fujimura, em Arte + Fé

Cuidado cultural: um caminho para a Shalom

Segundo Makoto Fujimura, o chamado de um criador cultural cristão gira em torno dos princípios de Momentos de Gênese, Generosidade e Pensamento Geracional. Isso significa que surge da percepção (em frustração) da falta de algo e busca propiciar um solo de florescimento, se coloca em oposição à lógica do utilitarismo e do pragmatismo, que sufocam o ato criativo, para poder comunicar Beleza e tem respeito pela Tradição, aprendendo com os que vieram antes de nós.

Isso é o que ele chama de Cuidado Cultural, que podemos seguir como uma opção ao conceito de guerra cultural, focando o poder gerativo da criatividade em oposição à lógica da escassez.

O Cuidado Cultural deve conduzir à nutrição da alma da cultura por meio da criação de Beleza e seu convite ao deleite e à satisfação de uma boa experiência além da mera utilidade. É perceber e buscar experiências de Maravilhamento que fazem da arte janelas para outras realidades. A partir disso, entendemos que artistas cristãos são chamados a co-criar com Deus ruma à Nova Criação. Nossas mentes foram capturas por uma imaginação escatológica. A esperança cristã é vivida como convite ao ato de criar e confiar em Deus para o futuro.

Precisamos entender que há diversos elementos da cultura brasileira que podemos apresentar a Deus e que precisamos também produzir cultura como uma força de ‘buscar a shalom da cidade’

Fujimura vê um paralelo entre a visão de arte cristã e a arte do Kintsugi. Não buscamos simplesmente consertar o que foi quebrado, mas infundir glória e criar o novo a partir dos fragmentos respeitosamente considerados. O resultado final é algo mais valioso do que existia antes.

Photo by Riho Kitagawa on Unsplash

Este é o conceito de Broken Beauty (Beleza Partida). A partir de Jeremy Begbie, teólogo e músico, podemos compreender que a Criação tem em Cristo sua antecipação escatológica, o que inclui a transfiguração da dor, sofrimento, distorção, nas realidade já inauguradas do porvir. E também que o Espírito atuando em nosso meio é o sinal da esperança da beleza antecipada do porvir (um paraíso perdido e um paraíso reinaugurado). Logo não é um retorno ao Éden, mas o encontro de algo Novo.

Reflexões sobre arte, cultura e teologia. Pensando a prática e a pesquisa em arte dentro de uma cosmovisão cristã.

“Rogo-vos pois [artistas] que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, esta é a [sua obra de arte]. Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente…” Rm 12:1–2

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Reflexões sobre arte, cultura e teologia. Pensando a prática e a pesquisa em arte a partir da filosofia reformacional.