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Reforma e Revolução: o jogo mudou!

Cristianismo, a Nova Filosofia Natural e a Ilustração Científica

Reflectum
6 min read2 days ago

Quando falamos sobre as relações entre Religião e Ciência, é necessário falarmos sobre a Reforma Protestante e sua influência no formação da Ciência Moderna. Do Renascimento ao século XVII, grandes mudanças ocorreram na Europa. Disputas teológicas, guerras, Revolução Científica, descobertas inovadoras, etc. Um novo jeito de olhar o mundo produziu uma Nova Filosofia Natural, afetou a Arte e o ponto de contato entre elas: surge a Ilustração Científica.

Neste 4º artigo da temporada ‘Fé e Ciência na Arte’ vamos falar sobre as consequências da Reforma Protestante na Filosofia Natural e como essas mudanças chegaram na Arte.

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O Pensamento dos Reformadores e suas consequências

O problema dos Reformadores com a Escolástica era a influência do pensamento Aristotélico, que Lutero via como fonte de corrupção do cristianismo medieval. A noção de virtude foi amplamente questionada e rejeitada como ‘salvação por obras’. A doutrina da depravação total não era compatível com a ideia de “certos hábitos pudessem aperfeiçoar as potências morais e intelectuais” dos homens. Os Reformadores e seus discípulos ensinavam que as faculdades intelectuais foram corrompidas, por isso não podemos confiar na nossa capacidade cognitiva para conhecer. Logo, o exercício da scientia não é o suficiente para encontrar a verdade.

Esse entendimento revisado das virtudes morais tem paralelo direto com avanços na abordagem experimental ao mundo físico, que se ocupa dos comportamentos dos objetos do ponto de vista da sua conformidade a leis, e não do ponto de vista de supostas virtudes e tendências internas. De fato, a crítica religiosa da ideia de habitus e sua relação com as virtudes foi reforçada por elementos da nova filosofia natural. — Peter Harrison

Os Reformadores também rejeitavam a Alegoria e isso fez parte do questionamento contra a autoridade da Igreja Católica Romana. O princípio do Sola Scriptura foi usado para descartar a essa tradição. Isso aconteceu no mesmo momento em que a matemática começa a ser utilizada como o novo método de “leitura” do Livro da Natureza.

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Até o fim da Idade Média, ‘religião’ era considerada como algo interno, devoção e piedade, e a prática estava ligada à participação nos sacramentos. No início da era moderna, passou a ser externalizado e relacionado com as crenças confessadas pela comunidade. Surgiu uma nova concepção de ‘religião’ como um conjunto de crenças e práticas. Peter Harrison afirma que a ideia que aqui se tem de “fé” é bem diferente do que se pensava até a idade média, quando o fundamento dos artigos da fé estavam na fidedignidade de Deus e não “no testemunho da razão humana”.

As virtudes então passaram a consideradas em sua “possibilidade de produzir comportamentos que estivessem de acordo com leis positivas”, isto é, demonstradas pela Razão e pela Ciência.

Revolução Científica e Fé Cristã

Como vimos anteriormente, a leitura do livro da natureza passou da Alegoria para a Matemática. Ao invés de ‘ler’ significados morais e teológicos nas criaturas, como faziam na idade média, buscava-se provas da autoria divina em princípios de design. Entendia-se que há uma estrutura na natureza que pode ser estudada: as Leis da Natureza. Nesse período houve a fusão da Filosofia Natural com a Matemática, iniciando o que hoje chamamos de Física. Essa combinação de disciplinas quebra a ideia de estágios de progressão que separava filosofia natural das disciplinas teóricas mais elevadas. Surge um novo tipo de filosofia natural: a Filosofia Experimental.

No início da ciência moderna, acreditava-se na neutralidade e suficiência da Razão para inferir verdades sobre Deus a partir do estudo da natureza. sem necessidade da Revelação. A fé cristã era um fundamento para o trabalho de muitos cientistas: estudar a criação de Deus é uma forma de adoração. O advento da ‘fisicoteologia’ produziu os Teólogos Seculares, “indivíduos sem nenhuma instrução formal em teologia que, não obstante, consideravam-se capazes de promover argumentos teológicos. Há dois nomes importantes: Kepler e Boyle

Johannes Kepler (1571–1630) entendia que contemplar a natureza era “verdadeiro culto para honrar a Deus, para venerá-lo, para admirá-lo” pois o mundo todo é “o templo de Deus”.

eu queria ser teólogo; por um longo tempo eu estive confuso, mas agora eu vejo que Deus também é louvado por meio de meu trabalho em astronomia” — Kepler

Robert Boyle (1627–1691) considerava a filosofia natural como “culto filosófico a Deus” e que “descobrir para os outros as perfeições de Deus exibidas nas criaturas é ato mais aceitável de religião do que queimar sacrifícios ou incensos nos altares dele”.

Para Peter Harrison, isso não poderia ser encarado como apologética, pois essa nova filosofia experimental ainda estava estabelecendo “suas credenciais epistêmicas, sua respeitabilidade religiosa e sua utilidade social”. O que aconteceu foi que eles passam a elevar certos aspectos do cristianismo que poderiam amparar com seus estudos, “desviando a atenção da dimensão formadora que outrora havia sido central às duas empreitadas”.

Enquanto que a Filosofia Natural na Idade Média buscava o aperfeiçoamento do indivíduo que a praticava. Essa Filosofia Experimental buscava o aperfeiçoamento do mundo pelo indivíduo. O mundo poderia ser restaurado, ou redimido, se homens aprenderem a controla-lo através da ciência. Enquanto que os medievais buscavam o domínio de si, os modernos buscavam o domínio da criação.

porque o homem, pela queda, caiu simultaneamente de seus estado de inocência e de seu domínio sobre a criação. Ambas perdas podem, no entanto, ser reparas em parte mesmo nesta vida, a primeira pela religião e a fé, a segunda pelas artes e as ciências. Pois a criação não foi feita, pela maldição, totalmente e para sempre rebelde” — Francis Bacon

Uma visão literal da natureza e a Ilustração Científica

Uma outra consequência da Reforma atingiu a Arte. Com o crescimento do movimento iconoclasta, artistas cristãos buscaram tema não religiosos para sua arte. Paisagem, natureza-morta, retratos e cenas do cotidiano foram pintadas de forma realista e literal. Os artistas espelhavam a visão dos primeiros cientistas de que a natureza revela algo de Deus, no caso dos artistas se procurava por Beleza.

A Arte Acadêmica foi profundamente influenciada pelos princípios da Filosofia Natural. O estudo da anatomia, da botânica e da perspectiva era obrigatório. Racionalidade, ordem e simetria eram os princípios mais importantes. Mesmo temas bíblicos eram pintados de forma “secularizada”. O Naturalismo, posteriormente, demonstrava influências da epistemologia empiricista, focando naquilo que é percebido pelos sentidos. Os mitos foram substituídos por cenas históricas.

Muitos artistas se aproximaram da ciência pela Ilustração Científica. Principalmente as mulheres que, apesar do treinamento técnico no desenho, não encontravam muito espaço no mercado de arte. A retratista Anna Waser (1678–1714) ilustrou o livro do polímata Johann Jakob Scheuchzer, que foi enviado à Royal Society para publicação com o endosso de Sir Isaac Newton. Outros nomes como Maria Sybilla Merian (1647–1717), Elizabeth Blackwell (1707–1758) e Sarah Stone (1760–1844) são importantes para o desenvolvimento da ciência.

As ilustrações científicas são essenciais para registrar, explicar e divulgar os fenômenos naturais estudados. As primeiras ilustrações eram feitas em gravura e coloridas à mão. O que tornava o processo lento e caro, porém posteriores avanços nas técnicas de imprensa facilitaram a publicação de livros ilustrados. Já no século XIX, quando a popularização da ciência era vista como benefício para a sociedade, as ilustrações científicas ganharam ainda mais notoriedade.

Visite a exposição virtual para conhecer mais sobre o papel da Ilustração Científica na relação entre Fé e Ciência.

Referências
Harrison, P. Os Territórios da Ciência e da Religião. Ultimato, 2017.
Walford, E J. The Great Themes in Art. AbeBooks, 2001.

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“Rogo-vos pois [artistas] que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, esta é a [sua obra de arte]. Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente…” Rm 12:1–2

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