Imago Dei

Imaginação como disciplina espiritual

Um exercício diário de fé, amor e esperança

Reflectum
6 min readMar 4, 2022
uma lâmpada desconectada sobre uma lousa de giz representando o exercício da imaginação

A imaginação é algo poderoso! Podemos criar mundos inteiros em nossas mentes e viver mil outras vidas além do nosso cotidiano. Recebemos essa habilidade ao sermos criados à imagem de Deus. A imaginação é a habilidade de ir além dos sentidos em um determinado momento no tempo, é um estágio do processo criativo. Todos nós possuímos imaginação, porém usamos de formas diferentes. O quanto da sua imaginação você está usando agora na sua vida?

o livro “sociedade do anel” de Tolkien como exemplo de imaginação criando novos mundos
capa do livro “A Sociedade do Anel” de J R R Tolkien

Imaginação também pode ser escapismo: criamos uma outra versão de nós mesmos que não cometeu os mesmos erros ou que não teve fracassos; pensamos que somos mais elevados do que os outros e nos enchemos de vaidade e orgulho. Podemos nos perder dentro de nossa própria imaginação e nos desconectar da realidade.

Temos autonomia para criar, sem as amarras da realidade, algo Belo ou destrutivo!

Como podemos então usar nossa imaginação para a glória de Deus?

Por que a imaginação é vital?

É através da imaginação que nos conectamos com o mundo que não podemos sentir. Contamos estórias para entender a nossa história e aspirar um futuro. As estórias nos guiam e nos influenciam. Fazem parte da nossa formação cultural, elas nos ajudam a entender nosso papel no mundo e como nos relacionamos nele. Sem imaginação perdemos a conexão com honra, justiça, glória, heroísmo, grandeza… Perdemos qualquer aspiração pelo futuro e busca por excelência.

Sem imaginação, nos fechamos em um mundinho mesquinho e empobrecido que é incapaz de considerar “o que pode ser”.

A imaginação é um reflexo do ato de criação de Deus, não só porque pode conceber o que não existe mas também porque é capaz de compreender a diversidade, isto é, diversas possibilidades de existência. Ela é necessária para que vivamos o Mandato Cultural.

Teologia como exercício de imaginação

Pode parecer algo estranho em um primeiro momento, mas a teologia pode ser enriquecida pelo exercício da imaginação. Por toda a bíblia, vemos o uso de linguagem imaginativa: textos literários cheios de poderosas imagens que despertam nossos sentidos e comunicam profundas verdades. São resultado de experiências reais com Deus.

Davi usa a imagem de um pastor de ovelhas para explicar a bondade de Deus em nossas vidas (Sl 23). Muitas vezes, falamos de Deus em nossos sermões e livros como se fosse uma mostra analisada em laboratório e produzimos uma teologia fria e sem vida. Não há vivência real.

Jesus, ao ensinar as multidões, trabalha a imaginação das pessoas ao dizer “o Reino de Deus é como…” em suas parábolas. Ele não fez isso simplesmente porque seria mais fácil de entender e todos ali eram “burros”, ele faz a mesma coisa com Nicodemos quando afirma “necessário é nascer de novo”. Jesus instigou a imaginação das pessoas porque as histórias nos movem e nos ajudam a perceber o mundo. Infelizmente, Nicodemos não deixou sua imaginação fluir e ficou preso no sentido literal, perdendo a verdade que Jesus estava compartilhando com ele.

Uso da linguagem imaginativa não é uma história que esconde uma verdade, mas sim revela, trás à luz, verdades profundas que, conectadas aos nossos sentidos, ganham significado em nossas vidas. Davi poderia ter feito um tratado filosófico sobre a bondade de Deus, mas, ao dizer “o Senhor é meu pastor”, ele permite que seu ouvinte se imagine como uma ovelha nos braços do Bom Pastor.

Em algum momento, uma ideia se tornará menos poderosa e alguma outra ideia se tornará muito poderosa. Não era um rebanho de ovelhas que o pastor cristão estava pastoreando, mas um rebanho de touros e tigres de ideias terríveis e doutrinas devoradoras. Cada uma delas forte o suficiente para se tornar uma falsa religião e devastar o mundo ”- G K Chesterton

Quando falamos das coisas de Deus, há muito que não podemos ver (inclusive o próprio Deus). Não podemos ver justiça, ou graça, ou o futuro, eles não estão aqui na nossa frente. Porém, podemos imaginá-los. O uso da imaginação nos ajuda a nos conectar com essa realidade sobrenatural. A imaginação pode estar a serviço da ortodoxia. Não é “faz de conta”, é um exercício de esperança!

Quando a carta aos Hebreus diz “lembrem-se dos que estão na prisão como se aprisionados com eles”, precisamos de imaginação para ter empatia, para nos colocar no lugar de outra pessoa e tentar compreendê-la. Precisamos de imaginação para amar, pois um amor que “tudo espera” (1Co 13:7) é capaz de imaginar um momento no futuro em que a situação não será tão difícil. Ao se fazer “de tudo para com todos” (1Co 9:22), Paulo usa sua imaginação para tentar entender como o outro vê o mundo. A imaginação é um exercício de amor!

As artes podem contribuir poderosamente para a Igreja, desenvolvendo histórias que falam aos sentidos, instigando a imaginação e interpretando a realidade do universo e de Deus.

“Abraccio” (2014) de Safet Zec. Tempera e colagem s/ tela.

Porém, se nós não exercitamos a imaginação, nos perdemos em clichês. Clichês são padrões imaginativos tão familiares que funcionam como um piloto automático. Coração e mente estão desconectados. Resultam em arte fraca e trivial. Eles nos roubam da profundidade da glória de Deus.

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Nós, artistas, temos um papel tremendo em despertar a imaginação da igreja e aproximar as pessoas de Deus.

Exercitando a imaginação: a prática das disciplinas espirituais

A imaginação pode nos levar a algo blasfemo ou a algo glorioso. Trazer a imaginação como parte das nossas disciplinas espirituais, nos ajuda a buscar sempre a glória de Deus.

Finalmente, irmãos, tudo o que for verdadeiro, tudo o que for nobre, tudo o que for correto, tudo o que for puro, tudo o que for amável, tudo o que for de boa fama, se houver algo de excelente ou digno de louvor, pensem nessas coisas. (Fp 4:8)

O texto acima não é sobre “pensamento felizes”. O que Paulo nos dá é um exercício de imaginação. É sobre encontrar esperança em meio ao desespero, sobre amar em meio ao ódio, sobre ter fé em meio às incertezas da vida. Podemos integrar a imaginação artística com a nossa prática devocional. Disciplinas espirituais como meditação, contemplação, solitude e silêncio são armas poderosas para uma vida com Deus mais rica e uma imaginação mais cheia Dele.

A seguir temos algumas sugestões de exercícios de imaginação para você acrescentar na sua prática devocional. Antes de começar, respire profundamente, inalando em 5 segundos e exalando em 5 segundos; isso te ajudará a liberar a tensão do corpo e a relaxar.

  • Exercício 1 — Descoberta de Deus em suas criaturas: Busque um “pedaço de natureza” próximo de você. Imagine Deus trazendo isso à existência pelo poder de sua palavra.
  • Exercício 2 — Amigo de Deus: Busque um lugar onde você possa estar só. Sente-se de maneira confortável. Imagine que Jesus está sentado ao seu lado. Converse com ele sobre qualquer coisa que vier à sua mente.
  • Exercício 3 — Aos pés do Mestre: Selecione uma passagem dos Evangelhos que descreve Jesus interagindo com as pessoas. Imagine que você está ali, vendo e ouvindo o que acontece. Sentindo o calor do sol, o vento soprando…

“Uma imaginação correta e boa o levará a uma vida justa diante de Deus, e uma vida justa diante de Deus o levará a estimular sua imaginação” — George MacDonald (poeta, escritor e ministro escocês do séc XIX)

Leia também: A vocação do artista

Referências

ARMSTRONG, Tina. Reclaiming contemplative practices. Fuller Studio

EBSYTNE KING, Pamela. Ignatian Spirituality, Silence, and Reflection. Fuller Studio

FOSTER, Richard. Celebração da disciplina. Flórida: Editora Vida, 1995

KEYES, Dick. Theology of the Imagination. L’Abri Ideas Library

Reflexões sobre arte, cultura e teologia. Pensando a prática e a pesquisa em arte dentro de uma cosmovisão cristã.

“Rogo-vos pois [artistas] que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, esta é a [sua obra de arte]. Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente…” Rm 12:1–2

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