Coram Deo

Precisamos de Imaginação Escatológica

Pensando a contribuição do artista cristão para a Shalom da cidade

Reflectum
5 min readJul 5, 2024

Nessa discussão sobre cuidado cultural e a contribuição do artista para a shalom da cidade, devemos considerar como a nossa produção artística participa do processo.

Neste artigo da temporada ‘Ás Margens da Babilônia’ vamos explorar a noção de Imaginário Social e sua relação como a busca do cristão pela shalom da cidade.

Não deixe de visitar a exposição virtual.

O que é Imaginação e o que ela tem a ver com a Realidade

Podemos considerar que a imaginação é a capacidade de a mente humana formar imagens, organizá-las em um todo coerente e provê-las de significado. Porém, é possível ir além e propor Imaginação como: 1. pensar em algo que não está presente para nós (real ou plausível, ficção); 2. desenvolvimento de imagens mentais (crenças sobre o que é a realidade, não-lógico); e 3. imaginação relacionada à experiência estética (criação e apreciação)

Assim, essas imagens são uma evocação de experiências que emergem de uma combinação complexa de conceito e linguagem culturalmente construídos, sendo uma compressão não-cognitiva do mundo ao nosso redor.

Contribuindo para o Imaginário Social

Talvez não esteja claro, mas não estamos falando da imaginação na cabeça de um indivíduo isolado. Tratamos aqui da noção de Imaginário Social, uma construção cultural sobre como o mundo funciona da qual todos participamos de alguma maneira.

…um imaginário social, vale a pena lembrar, é uma compreensão pré-cognitiva e pré-reflexiva do mundo: ele opera em uma ordem que antecede o pensar e o crer, e é ‘transportado’, diz Taylor, por meio de imagens, histórias, mitos e práticas associadas.” — James K A Smith, em Desejando o Reino

Podemos pensar sobre essa Imaginário usando as categorias do sociólogo francês Pierre Bourdieu: uma estrutura estruturada estruturante. E o que isso significa? É estruturada porque ele é comunitário e coletivo e se forma como presença ativa de todo o passado. E é estruturante porque é também pessoal e político, condiciona a construção de sentido e é naturalizado por nós.

Os diversos grupos culturais tem seu imaginário que perpassa as culturas mais amplas onde estão inseridas. Podemos falar de um imaginário brasileiro, mas também de um imaginário carioca que é diferente do imaginário baiano.

É preciso destacar que, apesar de ser presença ativa do passado, o imaginário social também se transforma ao passo que as novas gerações vão contribuindo para sua formação. Isso se relaciona ao que chamamos de Zeitgeist.

Leia também: Quem tem medo do ‘vírus’ Zeitgeist?

As histórias que contamos e recontamos fazem parte da construção desse Imaginário Social e as produções culturais, materiais e imateriais, contribuem nesse processo. É a partir das histórias que damos sentindo ao mundo que nos cerca. Desta forma, os artistas são os mordomos da imaginação pública, mostrando à comunidade como sonhar.

…para entender a cultura é preciso abrir mão da nossa fixação por ideias e teorias e, em vez disso, nos concentrarmos na ‘compreensão’ que está embutida nas práticas (…) todas as sociedades e comunidades são animadas por um imaginário social, mas isso não significa que todas sejam orientadas por um teoria. O imaginário social, diz [Charles Taylor], ‘é muito mais amplo e profundo do que esquemas intelectuais que as pessoas talvez cultivem quando pensam sobre a realidade social de maneira desimpedida’.” — James K A Smith, em Desejando o Reino

Isso significa que a noção de ‘cosmovisão cristã’ tem limites na capacidade de formação da pessoa inteira e na compreensão da cultura de forma mais ampla. Há uma necessidade de correção litúrgica do nosso entendimento e também de atenção às instâncias formadoras na cultura.

Por que a Imaginação Escatológica é necessária

E o que escatologia tem a ver com isso?

Se nosso imaginário social não considera a volta de Cristo e a Nova Jerusalém, então viveremos como se “esse mundo aqui é tudo que existe”. Nosso horizonte temporal ficará preso no imanente e, na prática, isso significa uma vida deísta longe da verdade do Evangelho. Deus se torna uma ideia que eu uso de acordo com meus desejos.

Devemos lembrar sempre que estamos no ‘Entre Tempos’, no já e ainda não. Mas se isso for apenas uma doutrina que mencionamos de vez em quando, não fará diferença em nossas vida. Isso deve ser vivido diariamente. Deve ser parte do nosso Imaginário Cristão. Devemos clamar Maranata! todos os dias. Se não, nos esqueceremos da Nova Jerusalém que aguardamos e da nossa condição de exilados e peregrinos na Babilônia.

Essa formação de uma Imaginação Escatológica acontece nas práticas diárias. Precisamos voltar às disciplinas monásticas para nos revestirmos das virtudes de Cristo (Cl 3:12–17). Para vivermos em desvio disposicional em relação ao mundo. Se faz necessário impactar a estética da compreensão humana por meio da renovação e reorientação da imaginação. Isso significa que precisamos estar totalmente tomados pela história de Deus redimindo o mundo em Cristo. Todos os dias.

Leia também: Imaginação como disciplina espiritual

Lembremos constantemente que aguardamos um Reino que virá em sua plenitude no futuro, este mundo não é nosso lar. Nossa imaginação deve criar sentido para a realidade a partir de Cristo. Tudo foi criado por meio Dele, Ele está reconciliando em si mesmo todas as coisas e consumará Sua obra ao trazer do céu a Nova Jerusalém.

A contribuição dos artistas cristãos

Para que isso seja realidade, apenas uma cosmovisão cristã não é o suficiente. Se quisermos verdadeiramente viver nossa missão, precisamos reformar o habitus, precisamos de formar uma imaginação cristã através da santificação da nossa imaginação (no nível individual) e da contribuição com o imaginário social (no nível coletivo). Para que essa segunda parte acontece, os cristãos que estão envolvidos com as artes devem produzir cultura não somente para a igreja, mas também para a cidade. Saindo do dualismo “arte congregacional ou arte evangelística’ para produzir arte que nos instiga a repensar a realidade.

Tolkien afirma que esta é função das Histórias de Fadas: recuperar uma visão clara da realidade perdida na familiaridade possessiva, isto é, uma abertura e expansão para além do Realismo Naturalista, uma voltar ao sentido de encanto e uma retomada à visão das coisas como devem ser vistas: como coisa à parte de nós mesmos. Considerando a criação como algo maior do que o homem a partir da libertação da possessividade.

Precisamos escapar das limitações de nosso presente estado sem desertar da realidade. Tolkien opõe o escape do prisioneiro e a fuga do desertor (este segundo seria uma alienação da realidade). Precisamos de uma arte que nos faz ir além das sombras desse mundo e que abri a realidade para um horizonte mais amplo: além da dor, da pobreza, da feiura, da injustiça desse mundo.

Reflexões sobre arte, cultura e teologia. Pensando a prática e a pesquisa em arte dentro de uma cosmovisão cristã.

“Rogo-vos pois [artistas] que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, esta é a [sua obra de arte]. Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente…” Rm 12:1–2

Inscreva-se no Medium para receber notificações dos próximos artigos.
Siga-nos nas mídias sociais: TwitterInstagram

--

--

Reflectum

Reflexões sobre arte, cultura e teologia. Pensando a prática e a pesquisa em arte a partir da filosofia reformacional.